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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Traição caipira é diferente

(Por Maria Mineira/São Roque de Minas) Houve uma época em que vovô Joãozinho teve um grave problema de saúde. Passou por uma cirurgia e ficou de repouso por vários meses. Muito contrariado viu sua fazendinha meio jogada ao léu. O milharal morrendo no mato, os pastos precisando roçar, o telhado do paiol desabando, o gado cheio de carrapatos... Havia um mundo de coisas a fazer, isso gastaria muitos dias de serviço, e na época vovô não tinha condições de pagar peão. Havia gasto todas as economias com médico e remédios.
          Tenho lembranças fragmentadas desse episódio. Era menina de uns treze anos e passava uma temporada na roça ajudando vó Geralda com os serviços domésticos. Não sei ao certo de quem partiu a ideia, se foi do vizinho Zé Mário ou do Roque Pedro. Sei que num domingo após o terço, sem vovô saber, fizeram uma combinação: iriam passar uma “traição” nele. 
          O que era a tal traição? Creio que hoje isso se tornou uma prática em desuso, mesmo no meio rural, pois, era diferente do mutirão. Apesar de ser também um trabalho solidário para executar rapidamente uma limpa de pasto ou uma capina, a ajuda era espontânea; espontânea, mas organizada.
          Uma pessoa em segredo convidava diretamente a vizinhança para tal dia e tal hora o grupo se reunir na casa de um compadre ou no cruzeiro e de madrugada passar a traição, a surpresa. Por sua vez o convidado estendia o convite ao parente para comparecer ao serviço. Funcionava o boca a boca, pois não havia telefone. Se necessário levavam o almoço pronto para não dar despesa ao “traído”. Quem pedia ajuda ou a recebia, ficava na obrigação de retribuir o serviço prestado, ajuda mútua.
          No dia marcado, os vizinhos esperaram o cair da noite. Lembro-me ter acordado com o foguetório, achei que o mundo estava acabando! Vovô Joãozinho e Vó Geralda se levantaram assustados com o latir do cães, a cantoria, os fogos de artifício, enxadas ou foices, usadas como instrumentos de percussão. Um dos vizinhos abriu a porteira, soltou três foguetes e mandou a turma vir chegando. Foi preciso alguém espantar os cachorros até o fundo da horta, porque queriam atacar os visitantes inesperados.
          Não me esqueço da expressão no rosto dos meus avós. Tadinhos deles! Ficaram tão comovidos que, tremendo de alto a baixo, se apoiando um no outro assistiam aquela manifestação de amizade. Homens e mulheres deram um banho de aguardente nos dois e os carregavam para o terreiro, onde a lua iluminava tudo. Choraram abraçados, não sei se era só de emoção ou se espirrou cachaça, encharcando os olho dos dois.
          Enfileirados com as enxadas nos ombros, os vizinhos cantavam:
os dois istimado amigo
Sá Gerarda e Sô João
Vem recebe seus vizinho
Pra esse grande mutirão.
Abre a porta acende a luiz
Pa podê nos recebê
O dia já tá clariano
Já começa amanhecê.
Nóis trabaia cantano
Pra mostra nossa vóis
Sá Gerarda vai pro fugão
Fazê um café pra nóis.
          O povo veio prevenido. As comadres trouxeram tudo para o desjejum. Antes do dia amanhecer fizeram uma oração e depois forraram o jirau de bambu com folhas de bananeira e colocaram uma grande variedade de quitandas: Pães de queijo, brevidades, roscas, bolos de fubá, biscoitos de polvilho e muitos bules de café quente.
          Mal o sol nasceu o grupo dos homens seguiu para a roça. As mulheres distribuídas pela casa iniciaram as tarefas: lavação de roupas, a plantação da nova horta de couve, debulhação de milho fazeção de doces e quitandas.
          Na roça, o mato sumia, cobras morriam, o coordenador do serviço gritava e a turma não parava. Durantes uma semana trabalharam para meu avô. A roça ficou capinada, os pastos limpos, o gado curado, o paiol e a casinha de queijo foram reformados.
          Era comum cantar durante o trabalho, ora em duetos ou em forma de coral. Havia o puxador e os outros respondiam - parecido com o canto da Folia de Reis ou Canto Responsorial.
          O homens cantavam:
Nóis toma uma cachacinha
Pru nosso peito isquentá
Vamo, vamo minha gente.
O serviço vai começá.
Alicrim despedaçado
Foi cortado e já morreu
Ieu tamém vivo magoado
Por amor que já foi meu
          As mulheres deixaram a casa brilhando, mataram e arrumaram dois capados, encheram as latas de biscoitos e a cristaleira de vó Geralda de doces. Lavaram e trocaram as palhas dos colchões, plantaram uma enorme horta de couve, capinaram todo o quintal e ainda podaram as roseiras, ariaram as panelas de ferro até brilharem.
          Elas trabalhavam cantando:
A lua bria no céu
Inté parece um quêjo
Sodades do meu amor
Faiz mêis qui ieu num vejo.
Si chorano ieu fizesse
Meu amor vim mi buscá
Ieu chorava noite intêra
Inté o dia clariá.
          No último dia da semana, depois de tudo pronto havia uma grande confraternização. Eram servidas tachas de arroz, tutu de feijão, leitoa assada, muito frango com palmito, macarronada com muito queijo ralado, suã de porco com arroz.
          Houve um pagode que durou a noite inteira. Todos voltaram de banho tomado e roupas novas . Os homens de lenço no pescoço, as mulheres vestidas de chita. Antes de começar um animado baile ao som da sanfona, das violas e cavaquinhos, ainda recitaram os últimos versinhos para meus avós que não cabiam em si de tanta felicidade:
Viva as roça capinada
De Deus nóis tudo é fio
Viva a nossa amizade
Viva os pendão de mio
Aqui estamos moçada
Nessa alegre reunião
Viva, viva cumadi Gerarda.
Viva, viva cumpadi João!
Nota: alguns dos versinhos eu lembrava, outros perguntei à minha mãe.
Na foto à direita, o meu avô Joãozinho, meu bisavô Tininho ao centro e sô Josué, um amigo deles. Saudades de todos...

14 comentários:

  1. Delicia de história,mesmo que seja fictícia,valeu pela simplicidade e a poesia que me fez recordar tantas coisas...

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    1. Edson Barbosa, a história é real na íntegra. Eu estava presente e vi de perto cada detalhe. Obrigada!

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    2. Lindo, a simplicidade é poesia pura. O ato em si é uma maravilha e uma raridade.

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  2. Excelente! Traição das boas essa... rsrs

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  3. Linda história! Me trouxe muitas recordações. Parabéns!

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  4. Que saudades bateu dos meus amados avós e bisavós que tive o privilégio de conhecer. Amei a história.

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  5. Que saudades, tempos bons que não voltam mais, essa solidariedade já vai longe...

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  6. lindos me fez lembrar do tempo de criança na casa de meus avós até chorei Parabéns pela matéria obrigada Abraços

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  7. saudades de Minas... Grata pelo relato maravilhoso!

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  8. Maria Mineira que alma doce a sua. Amei a história, vim da roça onde tinha esse tipo de ajuda, não tão elaborado assim, era na época da colheita de arroz, milho e feijão. Solidariedade e empatia chamamos hoje, naquela época era "uma mão lava a outra". Que saudade dos meus pais que se foram recentemente, uma ferida e que ainda sangra e dói horrores. Preciso do livro. Me informe como adquirir.Grande abraço!

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  9. NOSSA QUE BELA HISTÓRIA, MEUS PAIS ERAM DA ROÇA MÁS EU NUNCA VI UMA COISA LINDA ASSIM, AMEI!

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  10. adorei Será mesmo que existiu tanta solidariedade ??

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  11. Ahhh que gostoso de se ler... me fez lembrar meu avô " o Véio França " que dançava catira e corria fazendas nos festejos de Reis, com a dança das fitas e que certamente gostaria de participar de uma traição dessa.

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