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domingo, 4 de março de 2018

Ingredientes históricos e simbólicos na cozinha mineira

(Por Romilda de Souza Lima) “Aceita um pãozinho de queijo com café? Acabou de almoçar? Então um doce de leite? Um pedaço de goiabada com queijo? Pelo menos um café? Não há pior desalento do que estar desprevenido, mesma em rápidas passagens de amigos pela casa de um mineiro. Só um convite para um lanche ou para um jantar bem preparado pode reparar tal heresia.”
          Começo este ensaio com um trecho do livro da minha querida amiga, Mônica Abdala, professora, socióloga e especialista nos estudos da comida mineira e que escreveu um livro delicioso sobre o tema: “Receita de Mineiridade – a cozinha e a construção da imagem do mineiro” publicado pela primeira vez em 1997 e que me forneceu muitos insights. Foi aperitivo fundamental para eu pensar o tema de minha tese de doutorado, sobre as práticas alimentares e sociabilidades em famílias rurais da Zona da Mata Mineira, defendida em 2015.
          No imaginário popular o mineiro é o tipo que come devagar e que é apegado às tradições alimentares e que gosta de mesa farta. A comida mineira é considerada – por mineiros e por não mineiros – como uma das melhores do país. Essa fama vem se confirmando por anos e, atualmente, é uma das culinárias onde há maior investimento público e privado para valorizá-la, fortalecendo Minas Gerais como um destino turístico gastronômico de grande relevância. Só para citar alguns festivais culinários – ou gastronômicos – que já acontecem há alguns anos, podemos destacar o Festival de Cultura e Gastronomia de Tiradentes; a Festa do Pastel de Angu, em Itabirito; o Festival da Quitanda, em Congonhas; Festival Sabores da Roça, em Extrema; Festa do Pé de Moleque, em Piranguinho; o Festival da Cachaça em Salinas; O Festival Igarapé Bem Temperado, em Igarapé; o Festival do Queijo Canastra, em São Roque de Minas; a Festa do Café com Biscoito em São Tiago; o Festival de Comida e Cultura da Roça, em Gonçalves; Festa da Goiabada em Ponte Nova; 7º Festival de Cachaça Artesanal do Vale do Piranga, também em Ponte Nova; Festival da Jabuticaba, em Sabará; a Festa da Manga Ubá, em Ubá. Há muitos outros festivais e festejos – antigos e recentes – que se espalham por todo o Estado e cada qual com suas peculiaridades e iguarias culinárias.
          Em Minas, há até mesmo data comemorativa do “Dia da Gastronomia Mineira”: 05 de julho, em homenagem ao professor e escritor Eduardo Frieiro, nascido neste dia, em 1889, na cidade de Matias Barbosa e falecido em 1982. Frieiro é autor do livro: ”Feijão, Angu e Couve – ensaio sobre a comida dos mineiros”, publicado em 1950. Junto com alguns outros, foi meu livro de cabeceira durante a elaboração de minha pesquisa. 
          Discorrendo sobre a comida mineira dos tempos do auge da mineração, Eduardo Frieiro relata que a banha de porco ocupava lugar central na culinária e que o feijão e o toucinho eram companheiros inseparáveis na boa mesa mineira. “O toucinho dá substância ao feijão, podia agregar-se. Sem a banha que o tempera, seria comestível o feijão nosso de cada dia? A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco. Dos assados e frituras, de todos os guisados e ensopados, das sopas, dos molhos e farofas pinga a gordura em que são preparados” (FRIEIRO, 1982, p. 156).
          Praticamente em todas as casas mineiras nesse período – fosse na cidade ou no meio rural – havia um chiqueiro para a engorda de, pelo menos, um porco caipira, cujo objetivo principal era mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineração. Surgiu daí o hábito de consumir a carne, a gordura e o uso de outras partes do animal adicionadas ao feijão, que se constituía em alimento de grande valor energético e proteico, muito usado em função disso como alimento dos escravos. 
          Hábito este que permanece até os dias atuais entre os agricultores que entrevistei para minha pesquisa. Cozinha-se o feijão, o arroz e refoga-se a verdura, todos usando a gordura de porco. Além, é claro, de usar a gordura para manter a carne do porco abatido em conserva por longos períodos fora da geladeira – conhecido como “porco na lata” ou “porco de lata” mesmo que em todas as casas existam geladeira. 
          Em todas as casas que visitei havia também o fogão a lenha que era utilizado todos os dias para o preparo do almoço e alguns aqueciam a serpentina do chuveiro. O fogão a gás também estava na cozinha. Coadjuvante, ele servia para substituir o a lenha no preparo do café da manhã, enquanto o fogão ainda não estava aceso. Estamos falando então do modo mineiro de se alimentar, de manter uma tradição que está diretamente ligada ao gosto construído culturalmente e perpetuado no interior do Estado.
          Assim, como a criação do porco caipira, o cultivo da horta teve papel fundamental para a região mineradora na fase de escassez de alimentos. Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para garantir o acesso nas refeições o acesso a legumes, frutas, hortaliças e tubérculos. Passada a fase da escassez alimentar em Minas, as hortas permaneceram sendo cultivadas. As razões são, sobretudo, culturais e simbólicas, mas também pela praticidade de ter a hortaliça à mão. Até porque, acesso ao mercado não é tarefa das mais simples, como pude observar entre as famílias que pesquisei. Ter uma horta “bonita” é motivo de orgulho para as mulheres, as principais cuidadoras desse espaço. 
          Alguns meses de minha pesquisa de campo – novembro e dezembro de 2014 e janeiro de 2015 – houve forte estiagem na região, o que fazia com que muitas hortas estivessem comprometidas e com baixa produção. Apesar disso, em todas as hortas havia a couve. Era a hortaliça mais resistente e alimento de todo dia, acompanhado de angu, arroz, feijão e, quase sempre, frango; o que me fez refletir sobre o título do livro de Eduardo Frieiro: “Feijão, Angu e Couve”. Ontem e hoje, são alimentos cotidianos na mesa dos mineiros, sobretudo, do interior.
          Frieiro, após as pesquisas sobre a alimentação da fase mineradora até meados da década de 1950, sugeriu alguns dos alimentos que considerava possível serem caracterizados como típicos de Minas Gerais. A sugestão se deu em função da peculiaridade de seus preparos, são eles: o tutu de feijão com torresmo ou linguiça, o lombo de porco assado, a couve cortada fina e refogada e o angu sem sal.
          Mas então, o que tem de tão especial na comida mineira se tudo é tão simples? Para muitos amigos e amigas não mineiros trata-se do tempero (muito alho, colorau, cheiro verde) e do jeito que tem de “comida de todo dia”, da “comida de mãe”, da “comida de avó”.
          João Camillo de Oliveira Torres, professor e historiador, em seu livro “O Homem e a Montanha – introdução ao estudo das influências da situação geográfica para a formação do espirito mineiro”, publicado em 1943 e vencedor do Prêmio Diogo de Vasconcelos de Erudição, da Academia Mineira de Letras, nos fala também de suas investigações sobre a comida mineira. O autor aponta o café como sendo a bebida principal no dia a dia e para servir às visitas; e a cachaça – que se hoje ocupa espaço central em muitos restaurantes e bares – no cotidiano das famílias mineiras não era, nos tempos de outrora, bebida para servir às visitas. 
          De minha parte, como boa mineira, mesmo morando no Paraná, tenho sempre uma legítima cachaça mineira em casa e a uso como ligação afetiva na decoração, mas também, e muito, no tempero de carnes e outros pratos. Bem destacado pelo autor é que uma das características do jeito mineiro de ser, e de comer, é que “o mineiro nunca se preocupou muito com refinamentos e complicações”, mas em não faltar comida boa em casa, e, se possível, que seja farta e, preferencialmente, que as refeições sejam feitas em família, ainda que hoje isso seja possível quase que somente aos domingos. “Quanto ao menu, este brilha pelo peso, pela quantidade: tutu de feijão com linguiça, pernil de porco assado, goiabada com queijo, cobu de fubá e uma infinidade de outros pratos; jantar demorado e sobremesas alegres” (p.101). 
          Outro destaque do autor é dado ao do milho e seus derivados na cozinha mineira. Não por acaso o angu, a canjiquinha, a broa de milho com erva doce e o curau de milho doce reinam absolutas dentre as iguarias mineiras à base de milho.
          Bem, minha pesquisa de doutorado me mostrou que pelo menos na região em que estudei, poucas mudanças têm ocorrido nos hábitos alimentares das famílias rurais – embora não tão rurais assim, considerando que muitas pessoas, sobretudo, mulheres jovens trabalham na área urbana e continuam morando no rural. Não tem havido propriamente mudanças nos hábitos alimentares, mas adaptações necessárias e que não são acríticas. 
          As adaptações, as mudanças e as permanências nas práticas alimentares são adotadas desde que atendam aos interesses da família, e não por modismos. Por exemplo, o arroz, o feijão, a gordura de porco, a couve e o angu estão todos os dias na mesa dessas famílias no almoço e no jantar. 
          Na manutenção dos hábitos alimentares tradicionais está presente a influência dos guardiães da tradição na reprodução do gosto, no processo de significação e ressignificação da comida atrelada às práticas, aos saberes e aos hábitos, tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos. A constância das expressões: “aprendemos a comer assim”, “aprendi a cozinhar vendo minha mãe fazer”, “na casa de meus pais, fazia assim”, denotam a valorização dos aprendizados e o interesse na perpetuação dos hábitos.
           Por outro lado, a necessidade de conseguir fazer coexistir modos tradicionais e modos modernos não significa desvalorização cultural e recorro ao pensamento de Néstor Canclini. Não se trata “nem de transplante alienado, nem de desajuste com a própria realidade: tentativas de organizar o mundo moderno sem abdicar da história” (CANCLINI, 2008, p. 117). Apesar de estarem inseridas na dinâmica contemporânea de mudanças, a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento, que, de certa forma difere do ritmo das áreas urbanas, o que permite ainda este status central da comida em sua cultura.
          Mas como estou falando de área rural, é preciso refletir sobre o urbano. A comida mineira continua sendo a mesma nas mesas urbanas? Tem ocorrido mudanças drásticas? Os imóveis habitacionais modernos, que reduzem cada vez mais o espaço da cozinha, permite a manutenção da comida mineira? Ou sua degustação está reservada hoje aos restaurantes especializados e aos festivais culinários e gastronômicos? 
          Bem, isso é assunto para um outro texto, mas não resta dúvida de que na vida moderna, as festas e festivais gastronômicos e os restaurantes especializados nessa culinária colaboram ricamente para a manutenção do patrimônio da culinária mineira stricto sensu. Uma questão importante a observar é que o retorno ao tradicional, principalmente no que se refere à comida tem sido marcante na gastronomia moderna, mas na mesma ideia de Canclini acima, os/as cozinheiros/as contemporâneos tentam associar a cozinha moderna aos seus elementos tradicionais. 
          Até porque, como pondera o autor, a busca por aspectos da tradição e do passado pode ser um importante recurso a ser utilizado para compreender as contradições contemporâneas. Talvez isso ajude a explicar a expansão dos festivais gastronômicos em Minas. Muitos municípios e regiões querem ocupar seu espaço político e cultural nas especialidades da cozinha mineira.
          É preciso levar em consideração que a comida mineira tem em sua composição, como já sinalizado no texto, um ingrediente histórico e simbólico muito forte que influenciou e atribuiu particularidades à comida, o que a difere de algumas outras cozinhas regionais. A herança dos tempos da mineração e a construção dos modos mineiros de cozinhar e de se alimentar estão fortemente atrelados aos períodos por quais passaram a economia mineira desde seu povoamento, com fases de escassez de alimentos e fome (o período da mineração) à fase de fartura (ruralização), e, posteriormente à fase da industrialização. Esses ciclos interferem diretamente no que vem ser a chamada “comida mineira”, ou “cozinha mineira” para quem preferir. São fatos históricos determinantes na composição alimentar e que forjaram culturalmente a cozinha mineira tal como ele é.
Romilda de Souza Lima, é mineira, radicada no Paraná, professora universitária e pesquisadora 
Universidade Estadual do Oeste do Paraná; Pesquisadora Associada da Rede Ibero Americana de Pesquisa Qualitativa em Alimentação e Sociedade​; Pesquisadora da Rede Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar; Grupo de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional
Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Rural; Grupo Interdisciplinar e Interinstitucional de Pesquisa e Extensão em Desenvolvimento Sustentável
Referências
ABDALA, Mônica Chaves. Receita de mineiridade: a cozinha e a construção da imagem do mineiro. 2.ed. Uberlândia: EDUFU, 2007. 180 p.; CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EdUSP, 2008; FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1982. 227 p.; LIMA, Romilda de Souza. Práticas alimentares e sociabilidades em famílias rurais da Zona da Mata Mineira: mudanças e permanências. UFV: Viçosa/MG. Tese de doutorado. 2015. 204 p.; LIMA, Romilda de Souza. Nem tão mudado assim: a comida e os jeitos de comer no rural mineiro. Editorial Académica Española. 2017. 225 p.; TORRES, João Camillo de Oliveira. O homem e a montanha: introdução ao estudo das influências da situação geográfica para a formação do espírito mineiro. Historiografia de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 220 p. (Série Alfarrábios. Edição comentada por Francisco Eduardo de Andrade e Mariza Guerra de Andrade).

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