(Por Arnaldo Silva) Ser mineiro é eternizar emoções! Olho em meu redor, vejo minha casa, uma casa bonita que conquistei com muito esforço e que me dá todo o conforto e as facilidades que a modernidade me oferece. Abro o portão, vejo o asfalto, casas, praças, prédios, carros, gente apressada. Paro e volto para dentro de mim, revivendo emoções de tempos atrás.
A vida era difícil naqueles tempos. O trabalho era pesado, no braço. As dificuldades eram muitas, mas as famílias eram unidas, as brincadeiras eram sadias, a vida era saudável. As ruas eram cheias de vidas e as praças, lugar de encontro de casais enamorados. (foto acima de Gilberto Coimbra, o Porto Velho Rock Bar em Almenara MG)
Sento à beira da calçada, com os pés na sarjeta do asfalto e minha mente retrocedendo no tempo. Lembrei de uma frase que meu avô dizia: “Ser mineiro filho, é falar pouco e ouvir muito”. Incorporei esse conselho à minha vida.
Ser mineiro é saber falar Uai e na medida certa, expressar em apenas 3 vogais, desconfiança, confiança, alegria, raiva, tristeza, dúvidas, susto, medo, amor e saudades. Uai sô, que saudades! Que lembranças dividirei com vocês!
Saudade de um tempo onde as ruas não tinham asfalto e nem sabíamos o que era isso.
Não havia muros de concreto que dividiam casas e famílias. Apenas cercas baixas, feitas com bambu, apenas para proteger da entrada de animais.
As casas não tinham cadeados, nem chaves. As portas e janelas, eram feitas de madeiras rústicas, não tinham chaves, apenas uma tramela. Podíamos viajar, ficar dias fora e deixar a casa assim, apenas trancada com simples trincos e tramelas. Íamos tranquilos, sem nenhuma preocupação. (foto acima de Fernando Campanella)
Ser mineiro é se preparar para visitar os amigos. Lembro bem. A mãe nos vestia com a melhor roupa que tínhamos. Naqueles tempos, nossas roupas eram feitas com panos de saco de arroz, na roda de fiar. (como esta, na foto do Saulo Guglielmelli) Minha mãe aprendeu com minha avó, que aprendeu com a minha bisavó. E éramos bem vestidos.
Fazer visitas a um parente, um compadre ou comadre, principalmente quando alguém adoecia, era obrigatório. Íamos todos juntos, em família e levávamos presentes. Um bolo, uma rosca, um doce, uma cuia de cuité. Ofertávamos o melhor que tínhamos. Íamos ainda sem avisar. Se fosse perto, íamos a pé e se fosse longe, íamos de charrete. Era uma alegria tremenda pelo caminho.
Chegávamos antes do almoço e só íamos embora no fim da tarde. Éramos bem recebidos, com alegria e abraços. Era uma alegria, uma ternura e um afeto sincero dos que recebiam visitas e dos que visitavam.
A gente só ouvia: “não repara nada não viu?”. “Entra, senta que a casa é sua”. (acima, a tela do artista plástico mineiro Alfredo Vieira, retrata bem o interior de uma saudosa casa mineira)
Receber visitas era um dos melhores momentos das famílias. Sempre ficávamos felizes quando recebíamos visitas e quando iam embora, deixavam um vazio. E mesmo eu sendo criança, sentia a alegria de todos da casa em nos receber. Era um momento de abraços, de amizade, e de colocar os assuntos em dia.
Ser mineiro é falar com alegria da última reza do terço. Do batizado que teve na comunidade. Da colheita na roça e do porco na engorda. É falar da última visita à Aparecida. É relembrar os momentos de fé e alegria nas comitivas que cortavam o nosso sertão, levando e buscando gado. (foto abaixo de Arnaldo Silva) Ser mineiro é dividir a alegria do dia-a-dia com todos da comunidade.
Ser mineiro é receber bem as visitas, tomar bênção dos pais, tios, tias, avós e padrinhos.
Ser mineiro é respeitar e obedecer aos mais velhos, aprendi isso desde menino. A começar pelo irmão mais velho. Era o mais respeitado da casa, depois dos pais. E claro, ser mineiro é logo convidar as visitas para irem para o melhor lugar da casa: a cozinha.
Todos ficavam à beira do fogão, com a fumaça subindo pela chaminé, enquanto sobre o fogão, uma tábua pendurada e sobre a tábua, linguiças e queijos, defumando na fumaça.
Enquanto a chaleira esquentava a água para o café, a prosa era divertida e sempre alguém contava uns “causos” interessantes, que prendiam nossa atenção.
A mãe tirava da sacola o que tinha trazido e colocava tudo na mesa. A dona da casa, pegava queijos, biscoitos, broas, bolos, leite fervido, ainda com a nata, juntava tudo e a gente comia à vontade. Era um banquete! A mesa era farta. (foto acima de Saulo Guglielmelli na Fazenda Campo Grande em Passa Tempo MG)
Ser mineiro é não ter miséria na mesa.
Ser mineiro é dar o melhor que existe na casa, para as visitas comerem.
Era tão bom a casa cheia de gente, cheia de prosa boa, de comida boa e muito café. Ser mineiro é te chamar para tomar um cafezinho, mas não pense que é um cafezinho apenas. Vai tomar é o bule inteiro e ainda vai passa mais café, além de comer biscoitos, queijos, broas e brevidades. Isso não falta em cozinha de mineiro. (foto acima de Chico do Vale de Viçosa MG)
Ser mineiro é nunca recusar uma boa prosa e muito menos queijo, broas e biscoitos e claro, café. Pode até recusar uma cachacinha, mas recusar tomar café em casa de mineiro, é uma afronta!
Queríamos que não acabasse, que aquele momento de alegria entre vizinhos, amigos ou compadres e comadres fossem para sempre. Doces momentos da simplicidade da vida, que ficam eternamente marcados em nossa alma. Enquanto os adultos proseavam, as crianças brincavam. As meninas iam para o pomar e pegavam espigas de milho e brincavam de fazer boneca e depois pegavam os cabelos da espiga, colocavam em um pano, amarravam e brincavam de queimada. Os meninos faziam cata-vento e davam voltas em redor da casa. Brincávamos de esconde-esconde, de pegador. (tela acima do artista plástico Márcio Luiz)
Na hora de ir embora, era a parte mais triste do dia. A dona da casa nos dava mais coisas para levar. Era queijo, carne na lata, linguiça, doces, biscoitos, bolos e até farofa de carne desfiada com banana da terra. O pouco que a gente levava, trazia em dobro. Era sempre assim.
Ser mineiro é se entristecer com a partida e abençoar na despedida.
Sempre ouvíamos um “vai com Deus”, “que nossa Senhora te acompanhe”, “que Deus proteja vocês” e retribuíamos com mais bênçãos.
Meu pai e minha mãe faziam questão de convidar a família para nos visitar também. E iam sim, eram recebidos da mesma forma, com muita alegria, e simplicidade. Traziam coisas e levavam também. A amizade era recíproca. O prazer em receber visitas era um prazer mesmo, um imenso prazer e demonstravam isso.
Quando íamos embora, a família que nos recebia ficava toda na porta da casa, acenando. Enquanto não saíamos da vista deles, não saiam da porta. Voltávamos para casa, cansados de tanto brincar e comer, mas era uma volta cheia de alegria. Quando chegávamos em casa, tomávamos banho na bacia. Enquanto isso, meu pai gostava de ir no pomar, pegar cana, cortar e partir em gomos e dava pra gente, num prato. Dizia que a cana fazia a gente ficar forte. Nossa, que doce momento isso! Um ato simples, que nos alegrava. O doce sabor da cana é hoje, uma doce saudade desses tempos. (fotografia acima de Eliane Torino)
Não tinha energia elétrica. A luz que nos iluminava era a do sol e da lua. À noite, a nossa luz era a da lamparina, iluminava pouco, mas enchia nossos corações de luz. Era uma simplicidade de vida que emociona. (foto abaixo de Arnaldo Silva) Não tínhamos televisão em casa, apenas um velho rádio a pilha. Vivíamos em comunidade, todos eram amigos uns dos outros e todos se ajudavam. Se alguém passasse dificuldades, todos se uniam para ajudar.
As crianças brincavam tranquilas, com brincadeiras sadias e brinquedos simples. Eram saudáveis, alegres e na mais humilde família, o amor se fazia presente.
A gente ia para a horta, pegava chuchu e com alguns palitos, já fazíamos vaquinhas, bois, cavalos e brincávamos felizes. Fazíamos curralzinho com palitos. Reproduzíamos o mundo que vivíamos, em nossas brincadeiras.
Eu adorava visitar as casas. Cada dia era uma novidade. Sempre fui muito atencioso e sempre prestava atenção em todos os detalhes.
Ser mineiro é ser bem sabido, olhar com discrição e guardar as emoções vividas.
São lembranças, que só quem viveu é que sabe. É um trem que nos marca para a vida toda. Lembranças de quando vi pela primeira vez minha avó fazendo queijo. Lembro do pingo, descendo sobre a tábua rústica de jacarandá, na dispensa da casa (bem parecido com a da foto acima do Múcio Furtado em Ibiá MG). Eram as gotas do soro que escorriam. Delicadas e pacientes gotas que caiam, a cada espremida que minha avó dava na massa.
Aquela criança, que ficava em silêncio, encostada à porta da dispensa, escura, com paredes de barro, tendo apenas as velhas bancadas de madeira bruta, já gastas pelos pingos e anos de uso, em silencia permanecia.
Na dispensa, tinha ainda as fôrmas de queijos e também, várias latas cheias de carne, sacos de arroz, fubá, polvilho, farinha de mandioca, feijão e café, da última colheita.
Ficava a observar o ambiente colonial, quase que medieval. Era ali, nas mãos de minha avó, que estavam os segredos coloniais de nossa culinária, guardados na mente e lembranças, passados de mãe para filha, ao longo de gerações.
Latões de leite, o coalho, a massa, o sal, o pano, as fôrmas de madeira, as cuias de cuité e o queijo sendo formado, enquanto pela tábua inclinada, o pingo descia. Pingo a pingo, formando o coalho para ser usado no dia seguinte. Era a perpetuação do sustento da família, o queijo de leite cru.
Pingos de um doce momento de minha vida que ficaram para a eternidade.
Essa criança foi feliz. Hoje, a felicidade ficou na lembrança.
Quando cresci, voltei ao lugar que tanto fui feliz. A vida se foi, a alegria se foi. O povo se foi.
Da comunidade, cheia de gente e de vida, nada existe mais. Da casa de minha avó e minha mãe, nada restou, o tempo levou. Eles se foram. Uns para a morada de Deus, outros, para a cidade grande, em busca de melhores condições de vida.
Onde passava a alegria das famílias, passa boi.
Pelos caminhos que íamos visitar os parentes, passa boi.
Nos campos dourados de arrozais e imensos cafezais. Hoje tem capim pra boi.
Do curral onde bebíamos leite cedinho, nada restou. As árvores do pomar, morreram. O riacho secou. A vida se foi.
O homem que cuidava de sua família, hoje cuida do boi.
O homem que plantava sua própria comida, planta comida pra boi. As cercas de bambu que protegiam as casas, não existem mais. Agora a cerca é de arame, para proteger o boi.
A vida se foi, ficou o boi. Eles se sentem os donos do lugar. São os donos hoje. (na foto acima, onde era um cafezal, hoje tem bois e vacas da raça guzerá, em Bom Despacho) Fui embora, deixei lá minhas emoções, alegrias, sonhos, brincadeiras. Ficou lá o boi.
Ser mineiro é se emocionar com o tempo que se foi.
Agora é hora de levantar da calçada, entrar para casa. Abrir o cadeado do portão, destrancar as portas e janelas com chaves, voltar para o mundo moderno.
A rua fica fazia, as praças ficam vazias. As casas parecem túmulos, todas lacradas, muros altos, chaves e cadeados. Mas é a vida que vivemos hoje. (na foto abaixo, há mais 20 anos, última visita que fizemos ao meu avô)
Hora de voltar para o vazio da solidão da vida moderna.
Não tem mais visitas, não tem mais famílias passando o dia na casa das outras, não tem mais compadre e nem comadre e nem as crianças pedindo bênçãos aos pais, avós, tios e padrinhos.
Hoje tem a tecnologia, as conversas em família e entre amigos, estão na palma das mãos, pelo celular. Não tem mais abraços, afetos, contato, almoços de domingo, brincadeiras no quintal.
O tempo passou, só me resta me conformar com a solidão, com a saudade, com a eternidade de momentos tão lindos, que nossos filhos hoje nunca viverão.
Hoje tenho tudo na ponta dos dedos, só apertar botões, teclar, tudo rápido e fácil, mas os doces momentos de uma vida que tive, as lembranças das visitas em família, dos almoços de domingo, do café aquecido na chapa do fogão a lenha, do pão de queijo, das broas, dos biscoitos de polvilho frito, da carne na lata, do prato esmaltado, da brevidade, do queijo, isso, tecnologia nenhuma me dará.
Posso mandar um abraço online para amigos, mas nunca será como dar um abraço real e caloroso em amigos e parentes, comadres e compadres.
Posso te dar um oi, um olá, mas nunca sentirá a alegria de pegar na mão de seu pai, mãe, avó, avô, padrinho ou madrinha e pedir bênção e ouvir “Deus te abençoe meu filho”.