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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Não chorem por mim, montanhas do Líbano

(Por Francisca Fonseca) O Líbano é um pequeno país de apenas 10.400km² na costa mediterrânea da Ásia. No litoral, numerosos portos se abrindo para o mundo numa intensa atividade comercial herdada pelos fenícios, antigos habitantes da região. No interior, nas montanhas, as oliveiras, as vinhas, as estradas ladeadas de macieiras, o pastoreio das cabras e as águas cristalinas. 
Fotografia recente de André Saliya das montanhas do Líbano num dia inverno rigososo.
         Da região litorânea próxima de Beirute vieram para Bom Despacho, Seman, que eram maronitas (católicos): Antônio Turco, Chico Turco, Pedro Turco e Joana Turca, com o marido Filipe. E muitos anos depois veio Maria, filha de Joana, que fora deixada ainda e com parentes no Líbano.
        De Gharife, no Estado de Chuf, nas montanhas, vieram os Hamdan: Hassen (Alcino), Salim, Seleimen, Nacib, Fued, Farhan, Nawaf e Nabiha. Eram drusos (um ramo da religião muçulmana). À época, segundo cálculo do sr. Salim, a família Hamdan tinha cerca de 150 membros no Brasil, contando os descendentes. Pedro Hamdan, o libanês que viveu anos no Leandro Ferreira, não era da família, adotou o nome em homenagem aos amigos Hamdan.
Bom Despacho MG no primeiro quartel do século XX. Restauração e colorização: Rogério Salgado
        O primeiro libanês a chegar aqui foi Antônio Turco, no último quartel do século passado. Trabalhou inicialmente como mascate e depois se estabeleceu como comerciante em um casarão onde hoje é o Branco do Brasil. Muito alegre e comunicativo, passava o dia sentado com as pernas cruzadas sobre o balcão, conversando. Sua casa, no Jardim Sem Flor, onde morava o Raimundo Cardoso, era um verdadeiro consulado do Líbano, recebendo e ajudando a todo patrício que por aqui aparecia. Pode-se dizer que a presença de Antônio Turco acabou atraindo muitos libaneses para cá. Ele vivia com uma tal de Adelaide e criou vários sobrinhos dela, entre eles, D. Cornélia Borba.
        Depois de Antônio Turco, seus irmãos foram vindos um a um. Chico Turco, que adotou o sobrenome Simão, veio trabalhando como marujo num navio em troca da passagem. Seis meses de viagem. Aqui trabalhou como mascate e comerciante fixo. Se casa com a brasileira Maria Jesuína e teve muitos filhos, entre eles o Juca Turno. O Zico Turco não era libanês, mas brasileiro, casado com dona Mariazinha, filho do Chico Turco e trabalhava no comércio com Juca Turco.
À esquerda o casarão da Familia Hamdan. Restauração e colorização: Rogério Salgado
        Já o primeiro membro da família Hamdan a chegar aqui foi Hassen Abe Hamdan que adotou o nome de Alcino, em 1904, com 20 anos. Se estabeleceu como mascate. Em 1914 se casa com Dona Sinhazinha, neta de Dona Chiquinha Soares. Depois abre a casa Síria na esquina da Rua Dr. Miguel Gontijo com rua 1° de Junho, de sociedade com o irmão Salim, onde vendiam de tudo: tecidos, sapatos, aviamentos, instrumentos musicais, ferragens, carne, cereais, toucinho dos porcos que engordava no fundo do quintal. Tinham ainda na loja uma bomba de gasolina e fabricavam colchões.
Á esquerda o Gharife, nome da cidade de origem dos libaneses e à direita, a Casa Síria. Restauração: Rogério Salgado
        Alcino viveu aqui até sua morte, aos 76 anos, deixando 10 filhos: Taufik (morreu em 1983), Alcino, Leda, Léia, Raimundo (Buru), Lauge, Déia, Faissal (Patinho) e Leila.
        Salim Abe Hamdan veio em 1913. Veio buscar o irmão Alcino. Ficou também. Se associa ao irmão na Casa Síria e aqui viveu até 1929 quando se transferiu para Belo Horizonte, à procura de um campo maior para expandir seu comércio. Logo que chegou, construiu um sobrado onde é hoje a o prédio ao lado do Banco do Brasil, onde era a Ricardo Eletro e o emprestou para funcionar como Escola Normal onde se matriculou como aluno. Rapidamente aprendeu português.
        Quatro anos após sua chegada, tirou o 2° lugar num concurso de teatro. Fundou com os irmãos o Bom Despacho Futebol Clube, onde por muito tempo jogou no primeiro time. Foi um dos sócios fundadores do Clube Bom Despacho. Em 1931 ,já em Belo Horizonte, se casa com Maria Seman, filha de Joana Turca.
A Casa Síria em 1939. Restauração e colorização: Rogério Salgado
        Quando tinha 87 anos, ainda vivendo com a esposa em Belo Horizonte, Salim afirmava que os anos aqui passados foram os melhores de sua vida. Eram festas, bailes, futebol, teatro, namoradas, aulas de bandolim, o curso na Escola Normal e sobretudo muitos amigos, entre eles o Nicolau Leite.
        Em 1925 chegou Seleimen Abe Hamdan, vindo se ajuntar aos irmãos Salim e Alcino, deixando no Líbano a esposa Nabiha de 17 anos com 2 filhos, Nawaf de 1 ano e 3 meses e Neif de 40 dias. Aqui Seleimen trabalha como mascate e mais tarde abre o Bar Cruzeiro, na Faustino Teixeira, onde é hoje a Livraria Central. E aqui viveu até 1958, quando morreu.
        Alguns anos depois da chegada de Seleimen, vão chegando seus sobrinhos: Nacib, Fued e Farhan. Ficam pouco tempo por aqui. Farhan se casa com Gessi, irmã do José Pessoa Marra e vai para Nanuque. Fued foi para Nanuque e depois voltou para o Líbano e Nacib logo foi para Belo Horizonte.
Em 1953 chegaram Nawaf Seleimen Bou Hamdan e a mãe Nabiha Youssef Bou Hamdan, natural da Síria.
        Nawaf nasceu em 1923 em Gharife, no estado de Chuf nas montanhas, a 60 km de Beirute. Com 1 ano e 3 meses foi deixado pelo pai Seleimen, com o irmão Neif, de 40 dias com a mãe Nabiha. Nabiha trabalhava seis meses por ano nas colheitas de azeitonas, nas imensas plantações de oliveira que cobriam as montanhas de Chuf para tirar o sustento de um ano.
        Nawaf foi criado na pobreza, numa casa de um único cômodo, praticamente sem móveis. No chão tapetes com almofadas. À noite os colchões cheio de lã de carneiro estendidos um ao lado do outro.
 Aos 12 anos, a fome rondando sua porta, teve de abandonar a escola e começar a dura tarefa de procurar um emprego para ajudar a mãe no sustento da família. Nos documentos a palavra druso que o discriminava num país onde a legislação deixada pela ocupação francesa privilegiava os maronitas. Não consegue emprego. O recurso foi ir com um primo para a Síria, onde trabalhou como tratorista até os 30 anos, quando vem para o Brasil. Passa seis meses na Síria e seis com a mãe em Gharife. No Líbano não se trabalha no campo por causa da chuva e do inverno.
        O menino Nawaf quando ouvia a palavra pai estremecia. Apesar da dura vida que levava ele sonhava. Sonhava um dia dizer pai e ter resposta. Do alto das montanhas de Gharife ele avistava o mar Mediterrâneo em Beirute e sonhava atravessar aquele mar e depois atravessar o Oceano Atlântico para se encontrar com o pai no Brasil.
        O menino Nawaf cresceu e o sonho cresceu junto. Em 1953, já com 30 anos e noivo, não aguenta mais a saudade do pai. Escreve-lhe uma carta abrindo seu coração. Recebeu resposta inusitada do pai. E
 logo a seguir três passagens para o Brasil. O irmão Neif já casado não quis vir. Nawaf veio com a mãe. No aeroporto do Rio de Janeiro a emoção do reencontro com o pai que também emocionado se atrapalha e lhe dirige a palavra em português.
        Aqui em Bom Despacho Nawaf trabalhou 5 anos com o pai no Bar Cruzeiro. Os primeiros meses foram muito difíceis, apesar da alegria de estar junto com o pai. Não estranhou o clima e nem teve problemas com a alimentação, mas teve uma dificuldade imensa com a língua. Se angustiava por não entender nada que as pessoas diziam e nem por não saber falar com estas pessoas. E sofria muito com a saudade do único irmão deixado no Líbano. Três meses após sua chegada, resolve voltar para o Líbano.
        Quando os papéis ficam prontos sete meses depois, não consegue mais voltar. Arranjara uma namorada, a professora Dona Zeni que pacientemente lhe ensinava a falar e a escrever o português. Fica. Ele e Zeni se casam. No filho mais velho a tradição libanesa do nome do pai: Seleimen Nawaf Hamdan. Nos outros filhos os nomes libaneses: Samir Hamdan, Semi Hamdan, Samira Hamdan.
À esquerda, no sobrado branco funcionava a antiga Escola Normal. Restauração: Rogério Salgado
        Com a morte do pai em 1958, fechou o bar e continuou só com a loja que abrira onde fora a Farmácia do Favuca, mais tarde transferida para o sobrado da Escola Normal que alugou do tio Salim. A Escola Normal ficava ao lado do prédio onde existia a Ricardo Eletro.
        A mãe viveu em sua companhia até a morte em 1975, aos 67 anos, sem nunca ter aprendido a falar o português. Mas adorava o Brasil. Nunca quis voltar para o Líbano. Morreu sem ver o filho Neif.
Viver no Líbano para Nawaf significava passar fome. Ele nunca se esqueceu da dura vida que levou lá. E aqui na sua mesa tinha sempre os pratos libaneses, como o iogurte, a lentilha, o feijão-branco com rabada, o grão-de-bico, o óleo de gergelim, galinha cheia de arroz, charuto de repolho e outros.
        Já idoso, Nawaf continuava com seu coração dividido entre o Brasil e o Líbano onde continua vivendo o irmão Neif que há mais de
 30 anos não via. Acompanha apreensivo a guerra civil que destruiu o Líbano, uma guerra que se propôs pôr fim aos privilégios políticos dos maronitas que sempre escolheram o presidente da República, segundo a legislação do país.
        Mesmo décadas após deixar o Líbano, Nawaf ainda sonha. Sonha voltar ao Líbano para rever o irmão. Voltar a passeio, por que o Brasil passou a ser sua pátria onde estava sua esposa, seus quatro filhos e as duas netas. Ao mesmo tempo ele sonhava e chorava pelas montanhas do Líbano. Ele dizia que maior do que a saudade é o medo. O medo de subir no alto das montanhas de Chuf e ver a desolação. Medo de não mais reencontrar o irmão. A última notícia que tinha recebido do irmão foi em janeiro de 1983, através de um parente que morava nos Estados Unidos e fora ao Líbano. E nada mais. Escrevia, escrevia e não obteve resposta.
*Francisca Fonseca é advogada, professora de história e moradora de Bom Despacho MG. Texto originalmente escrito em 1983

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