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terça-feira, 25 de maio de 2021

A noiva

(Por Marina Alves*) Aristides Madeira estava à beira de completar 26 anos quando herdou de seu pai, o coronel Tomaz Madeira, a fazenda Santa Bárbara, vasta propriedade de terras cortadas pelo rio de mesmo nome. O pai falecera recentemente vítima de uma queda do cavalo. A mãe, Sinhá Rosa, tinha já partido no ano anterior, nem esperara as festas do São João: acordou em certa quinta-feira se queixando de umas dores no peito e nem teve tempo direito de dizer adeus ao marido e ao Tide, filho único que Deus lhe dera de um casamento de quase cinquenta anos.
          De ter pai e mãe e se esbaldar na pura diversão da boa vida, Tide se viu de repente com o peso de tocar a Santa Bárbara, com suas lavouras, seu engenho e as criações que seu pai trazia no maior capricho, pois que o gado de corte dali era carne cobiçada nos melhores comércios da capital Mineira. Quando se viu com o enorme encargo de pensar que tudo agora estava em suas mãos, Tide soube que era hora de tomar juízo: tinha que pôr de banda os divertimentos, abrir mão das festanças, regrar as idas à capital e buscar forças para tocar o patrimônio do qual era único herdeiro.
          Zé Andalécio, capataz de confiança do Coronel Tomaz, não negou ajuda ao moço. O caboclo conhecia de um tudo ali nas terras da Santa Bárbara. Desde moleque seguia as pisadas do patrão. Aprendeu cedo a lidar com o gado, com o curral e as lavouras. Também sabia mexer com a cabroeira, que exigia lei de comando. E com Zé ninguém triscava. Era se atrever a sair da linha e em dois tempos tinha já que bater em retirada, arribando o morro para não voltar é nunca mais.
          Zé era fiel ao Coronel Tomaz, a quem tinha não só como patrão, mas como um pai zeloso de quem aprendera toda a lida da roça. Devia agora amparar o coronelzinho que se achava mais desarvorado que cachorro perdido do dono em dia de procissão. Sim, ia ajudar o moço no que fosse preciso. E pra começar ia ter com ele uma conversa de homem pra homem. Se quisesse tomar conta da empreitada teria que sossegar o facho e abrir mão de muita regalia.
          Na conversa que teve com Zé, Tide pôs a sorte nas mãos do homem. Juramentou que dali pra frente a coisa ia mudar: o rapaz desmiolado morria e se enterrava ali naqueles acertos. Dali pra frente, ele iria, sim, honrar a Santa Bárbara e os negócios. Zé lhe ajudava, então? Se ajudasse, não tinha o que dar errado! Ia fazer prosperar ainda mais a fortuna dos Madeiras, que esperteza não lhe faltava — força nos braços e nas pernas também não! No lombo do Alazão, ia rodar aquelas terras dia e noite, botar olho em tudo, nada lhe ia escapar!
          Zé escutou as promessas do rapaz e se animou. Deu-lhe um tapinha nas costas, fez cara de quem botava fé e fechou o conchavo:
— Só lhe falta uma coisa, Tide...
— Pois diga, que se puder eu faço!
— Cê precisa casar, Tide! um home pra se estabelecer necessita casar, constituir famia.
          Para o espanto de Zé, Tide nem regateou:
— Pois se já tenho até a noiva, Sô! Essa semana mesmo vou ver Olívia e acertar tudo com o pai dela!
— A Olivinha? A fia de Coronel Jerônimo Guimarães? É uma joia! Vai atrás então, se avie logo!
— Meu pai e minha mãe tinham gosto de ter a moça por nora, Zé!
— E cê gosta da moça, Tide? Se gosta...
— Pois se gosto! É demais, e é de muitos anos, viu? Faltava mesmo era o empurrão...
          O acerto do casamento levou menos que a metade de um sábado quando o pretenso noivo e o capataz apearam na fazenda Paineiras. Dali pra frente foi só o tempo dos aprontes. Com a proximidade do enlace, a fazenda Santa Bárbara se movimentou. Tide queria receber a esposa com tudo no lugar. Mandou pintar a sede, dando nova mão de cal nas paredes e realçando o azulão dos janelões coloniais. Um verdadeiro mutirão pelejava noite e dia capinando os arredores, reparando cercas, replantando os jardins da frente, podando os pomares. Ah, e a reforma geral na capela de Santa Bárbara! Pois tinha que ser coisa fina! Veio gente de longe para os retoques finais. Era ali na igrejinha que a troca de votos se daria. Para isso, Padre Sangali tinha já reservado o 4 de dezembro, dia da Santa.
          Nas terras da Paineiras, as providências seguiam também a todo vapor. Olívia não se continha de alegria. Ia casar! E com um moço pra lá de bonito, disputado por metade das moças daquelas bandas e para além do povoado. A caixa do enxoval foi toda vistoriada, lavada e perfumada. Mas Olívia se perdia mesmo era a olhar o vestido recém-costurado, finamente bordado pela Lurdinha, costureira de noivas das mais afamadas. Dias e dias bordando cada pedrinha, pregando rendas no véu, tecendo a coroinha de flor. Haveria de ser uma noiva pra ninguém esquecer!
          A manhã do dia 4 de dezembro resplandecia em sol, quando o cortejo vindo da Paineiras apontou na curva do caminho. À frente, numa charrete enfeitada, vinha a noiva, seguida pela extensa comitiva. Do alpendre da casa, ao lado de Padre Sangali, Tide mal se continha. À medida que o grupo se aproximava, ele já podia ver os contornos daquela que até a hora do almoço chamaria de esposa. Não poderia ser mais feliz!
          Olhar fixo na charrete de Olívia, Tide apalpou as alianças na algibeira do paletó de linho, suspirou fundo. Foi nesse exato momento que assistiu à cena que jamais esqueceria em toda a sua vida: repentinamente, assustado pelo movimento na estrada, o boi Medonho — cujo nome fazia jus à fama de brabo — num salto magistral pulou a cerca e investiu contra a charrete próxima a alguns metros da ponte. Tomado de susto, o cavalo empinou nas patas traseiras. Um longo e estridente relincho ecoou pelos ares e o animal disparou em desabalada carreira rumo ao rio.
          Olhos estupefatos, familiares e convidados nem tiveram tempo de absorver o sucedido, verdadeiro espetáculo de terror que se desenrolou e teve seu desfecho nos segundos seguintes. O Coronel Jerônimo só compreendeu a gravidade da coisa quando viu o cavalo, a charrete e a filha se espatifarem nas pedras sob a ponte, sendo arrebatados em seguida pelas corredeiras furiosas, engrossadas pelas águas das últimas chuvas. Em tempo de um piscar de olhos, o rio turvo e caudaloso, tratou de arrastar e engolir corpos, varais, tábuas e rodas desaparecendo com tudo no turbilhão das correntezas.
          Alguns anos passados do terrível ocorrido de 4 de dezembro, Tide encheu-se de coragem e retornou à Santa Bárbara de onde tinha se mudado após o trágico acidente. O casarão se acabava em total abandono. Isto, porque corria de boca em boca o dito de que nas noites de escuridão, por ali vagava o fantasma de uma moça a se lamentar por certo noivo perdido... E as histórias eram tantas que ninguém mais se aventurava a habitar a antiga fazenda. Seria mesmo verdade? Ah, quem queria pagar pra ver? E a coragem que faltava? — que ninguém era doido pra querer haver-se com alma doutro mundo.
          Por último, antes de retomar viagem, Tide entrou na capela em ruínas. O mato tomava conta de tudo, encobria a pequena construção que em tempos remotos ostentara o suntuoso altar de Santa Bárbara. Ali, onde tudo era solidão e o tempo fizera seu estrago, pouca coisa restava. Era como se a igrejinha se vingasse do sonho de amor que ali não se realizara. O rapaz não conteve as lágrimas. A desolação do lugar lhe acordava antigas dores. Aqueles ares tétricos, sombrios o sufocavam.
          Tomado de grande tristeza, Tide decidiu sair daquele local que tantas recordações lhe trazia. Nunca, nunca mais pretendia pôr os pés ali. Num último olhar, quis gravar as imagens derradeiras... Foi quando um objeto de diáfana alvura, oculto entre o musgo, lhe chamou a atenção. Aproximou-se, e qual não foi seu espanto ao dar com uma coroinha de noiva, delicadamente trançada com flores miudinhas. Perplexo, reparou que permanecia intacta, como se jamais houvesse sofrido a ação degradante do tempo. Com dedos trêmulos, segurou a coroinha, e um inesperado aroma com frescor de flor de laranjeira inundou o ambiente. Um arrepio gelado percorreu o rapaz de alto a baixo, o ar faltou-lhe, o coração disparou em descompasso. Sim, não havia a menor dúvida: a presença de Olívia habitava a capela...
*Marina Alves é professora e escritora em Lagoa da Prata MG/Maio de 2021
História fictícia criada pela autora com fotos meramente ilustrativas,.
A primeira fotografia é de César Reis em Tiradentes MG, na Zona Rural de Tiradentes, a segunda, de Luís Leite, na Serra da Canastra e a terceira fotografia é do Guilherme Augusto/@mikethor, de uma velha capela na Zona Rural de Jacutinga MG.

Um comentário:

  1. Foi um prazer essa produção, criada a partir de imagens muito inspiradoras. Obrigada, Arnaldo Silva!

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