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domingo, 28 de janeiro de 2018

A Maldição do Tesouro

(Por Marina Alves*) Muito antes de cair gravemente enferma de um mal que acabaria por levá-la à morte, Dona Ermelinda tinha já aquela preocupação: o que seria de seu filho Jerônimo, assim que ela morresse? De seu casamento com o Coronel Amâncio Alvarenga, ela tivera quatro filhos, dos quais, ele era o caçula e único homem. Vivia amargurada, pois desde menino só lhe causava desgostos. Saíra ao pai, homem rude e cruel que vivia de fazer ruindades com os criados da casa e os negros da senzala.
          Ela, Dona Ermelinda, tida por santa pelo seu coração de ouro, não se conformava em ver o rapaz praticando as mesmas barbaridades do pai. Via-o surrar os negrinhos e muitas vezes, ela mesma ia tirá-los do porão da casa onde Jerônimo os prendia sem água e sem comida! Ela não se acostumava com aquela rotina. Era o dia amanhecer e já via o filho de chibata em punho, indo se divertir no curral. Lá, torturava os animais sem dó nem piedade! Chicoteava-os até deixá-los em carne viva e queimava-lhes o lombo com o ferro em brasa, práticas que só interrompia quando ela, com sua autoridade de mãe, intervinha em favor dos pobres bichos. Foi assim que, em seu leito de morte, suas últimas palavras foram para aquele filho cruel:
          — Jerônimo, quero morrer em paz. Prometa que deixará essas malvadezas que sempre praticou. O que será agora dos negrinhos e dos pobres animais?
          Porém o rapaz olhou-a com frieza. Nada comovia aquele coração de pedra. Era em vão o pedido suplicante da mãe, pois ele não tinha qualquer intenção de mudar o seu jeito, gostava de ser como era. E sem poder ouvir a promessa desejada, a infeliz mulher cerrou os olhos lacrimejados de tristeza e entregou sua alma a Deus.
          Sem a presença da mãe, Jerônimo agora se esbaldava em suas atrocidades. O pai, já velho e meio demente, não conseguia mais tocar a lida da fazenda, tarefa que acabou passando para o filho, agora já homem feito. E era ali, lanhando corpos no tronco; usando à revelia o terror de sua chibata; se esmerando no requinte de seus castigos e crueldades que ele espalhava por toda parte sua fama de carrasco.
          Quase dez anos havia se passado desde a morte de Dona Ermelinda quando, um dia pela manhã, os gritos da criada de quarto do Coronel Amâncio ecoaram pela casa com aquela notícia: o homem estava morto! Encontrara-o todo roxo, o corpo já enrijecido pendendo da cama. Já completamente leso das ideias, morrera de velhice.
          Na volta do funeral, as irmãs se reuniram com Jerônimo. Tinham que decidir sobre os destinos da fazenda. As três moravam com os maridos em terras distantes, mas não queriam os seus bens ao deus-dará. Como é que ia ser dali pra frente? O irmão, de pouca conversa que era, não quis saber de muita arrumação. Ia ficar ali, administrando a fazenda como bem quisesse. Elas que se conformassem com o jeito dele de zelar pelo patrimônio dos Alvarenga.
          Assim que a caravana das irmãs dobrou a curva do caminho, Jerônimo selou o cavalo, pegou seu chicote de ponteira de aço e partiu a galope rumo aos canaviais. Ia levando a novidade. Ele agora era o senhor absoluto, o único herdeiro de toda a fortuna da fazenda Campina Verde! Nem as irmãs se atreveriam a meter o bedelho nos negócios. Era chumbo grosso no lombo de quem se aventurasse a pôr os pés por ali. O sangue ia jorrar como nunca por aquelas bandas!
          Além da tirania, Jerônimo era também dominado por mórbida ambição e abominável avareza. Tinha medo de que as irmãs viessem disputar suas partes na herança e se consumia no pavor de ficar pobre. Queria tudo para si, sem a desgraça de ter que dividir um naco só que fosse de toda aquela riqueza que tinha nas mãos. Foi assim que teve uma ideia mirabolante: cavou um enorme buraco no chão de terra batida da cozinha e para lá começou a levar tudo o que ia conseguindo com a venda do gado e os lucros do engenho de cana.
          Ao fim de alguns anos, Jerônimo tinha conseguido juntar um invejável tesouro em moedas de ouro que, sem ninguém suspeitar, ficou bem escondido debaixo de uma pesada caixa de tábuas de aroeira, em um canto da cozinha. E quando Veridiana, a pedido das outras irmãs, viera saber das contas da fazenda, fora duramente escorraçada por Jerônimo.
           Aquela tinha sido a gota d’água! Tomada de um ódio mortal, ela lançou sobre o irmão uma terrível maldição: enquanto ele tivesse posse das riquezas que não lhe pertenciam, jamais haveria de ter um só minuto de sossego.
           Foi num fim de tarde, quando Jerônimo voltava de suas andanças pelas lavouras que tudo aconteceu. Ao esbarrar num galho de árvore foi atacado por um furioso enxame de abelhas. O cavalo, também atingido pelas picadas venenosas, disparou mato afora completamente cego. E naquela carreira enlouquecida, atirou longe o cavaleiro que bateu violentamente a cabeça num tronco, morrendo ali mesmo no meio do pasto.
          Depois da morte de Jerônimo houve um acordo entre as irmãs: a fazenda agora voltava às suas mãos. Tinham que se mudar para lá, a fim de cuidarem dos negócios. E naquela mesma semana elas tomaram posse do enorme casarão de vinte e três cômodos e amplos janelões pintados de azul.
          Nas primeiras noites que ali passaram, os novos moradores estranharam um pouco os ares tétricos e as correntes geladas de vento que assoviavam nos imensos e escuros corredores desertos, mas tirando aquilo, tudo transcorria sem maiores novidades.
          Uns dois meses após a mudança foi que o primeiro fato sinistro se deu. Por volta de meia-noite, todos dormiam. A casa estava mergulhada em silêncio e escuridão, quando Ana, a mais velha das irmãs, acordou sobressaltada. Tinha ouvido um barulho que a deixara gelada. Escutara nitidamente, vindos do porão sob a casa, os ruídos de uma pesada corrente sendo arrastada pelo chão. O som retinia de forma horripilante indo e voltando. Ora alto, ora mais baixo, conforme se aproximava ou se afastava. Ao fundo, ouviam-se ainda, gemidos fracos e chorosos como se arrancados de alguém com muita dor. Porém, quando junto do marido, a mulher pegou o lampião e desceu ao porão, encontrou tudo na mais completa ordem. Será que imaginara coisas? Achou melhor não comentar o fato, pois lhe pareceu que ninguém na casa tinha ouvido nada.
          Na segunda vez, foi Braz, marido de Rita, quem ouviu o barulhão vindo da cozinha. O estardalhaço provocado dava a impressão de que não sobrara um objeto sequer sobre as prateleiras. Sentou-se confuso na cama. O que seria aquilo? Decidido, atravessou o longo corredor e entrou no cômodo. À luz da vela, espiou com certo receio. Esperava encontrar tudo pelo chão, mas para sua surpresa, tudo estava nos devidos lugares.
          Como aqueles estranhos fenômenos se repetissem com frequência, a família Alvarenga, por fim, teve que admitir. O casarão da fazenda estava realmente habitado por espíritos conturbados que, não tendo rumo certo, pairavam por ali aterrorizando os vivos. Assim, de comum acordo, os herdeiros resolveram voltar para suas antigas moradias. Por muito tempo o casarão ficou abandonado. Com fama de mal-assombrado não houve quem se aventurasse a habitá-lo.
          Depois de anos passados, chegou àquelas terras um valente domador de cavalos, de nome Leonel. Era conhecido pela sua coragem em enfrentar almas do outro mundo e exorcizar espíritos malignos. Sabendo do ocorrido na Campina Verde, se dispôs a hospedar-se por algumas noites na fazenda. Tinha para si o desafio de desmascarar qualquer assombração que por ali vagasse.
          Na noite do oitavo dia ali no sobrado, Leonel acordou com uma forte tempestade rugindo nas árvores lá fora. Em curtos espaços de tempo, trovões ensurdecedores ribombavam no céu e a escuridão do quarto era riscada pelo clarão dos relâmpagos no vão das telhas. O peão levantou-se ouvindo algumas janelas que batiam furiosamente com o vento. Foi nesse instante que escutou, em meio ao temporal, o retinir arrastado das correntes e as tristes lamúrias que a ventania soprava para dentro do quarto. A seguir, ouviu o estrondo de coisas desabando na cozinha. Valendo-se de toda a sua coragem foi em direção à barulhada, mas no limiar da porta estacou estupefato. Tudo permanecia intacto, na mais perfeita ordem.
          — Quem é você? perguntou com voz firme, no meio do escuro.
          Não obtendo resposta, fez a pergunta pela segunda vez. Havia apenas um silêncio que chegava a doer. De repente, o vendaval zumbiu com violência e escancarou de uma só vez as duas partes da janela de madeira, inundando o ambiente com um frio de cortar os ossos. Leonel sentiu os pelos se crisparem e teve certeza: havia alguém ali. Decidido, tentou mais uma vez:
          — Quem é você? Sei que está aqui...
          Então ele ouviu uma voz rouca e tremida que parecia sair das profundezas:
          — Sou eu, Jerônimo... Filho do Coronel Amâncio Alvarenga.
          — E o que faz aqui? gritou Leonel com autoridade.
          — Vigio o meu tesouro! retumbou a voz tenebrosa. Está ali enterrado no chão onde o escondi...
          — Pois acho bom que siga seu rumo completou o domador. Esse mundo não lhe pertence mais...
           Naquele momento, uma lufada de vento gelado varreu a cozinha e bateu a janela. Leonel sentiu que os fluidos maléficos do local tinham sumido. Enxugou a testa e manteve a calma. Voltou para a cama e dormiu tranquilamente. Nada mais havia a ser feito.
          No dia seguinte, o peão mandou chamar alguns homens e deu-lhes ordem para cavarem o chão da cozinha. Queria ter certeza de que o que ouvira na noite anterior era mesmo verdade. Depois de muita terra retirada, Leonel podia jurar: ali não havia nada! Fora enganado feito um bobo! Porém, um dos homens lembrou:
          — Dizem que ouro enterrado anda debaixo da terra. Será que esse andou?
          Leonel não sabia daquela novidade, mas pelo sim pelo não, mandou que cavassem mais adiante. E qual não foi a surpresa de todos quando, a alguns metros, a picareta chocou-se com uma bela e reluzente moeda de ouro! Era o tesouro de Jerônimo, cuja maldição não o deixava sossegado.
          Depois de repassar aos Alvarenga toda a fortuna que lhes era de direito, Leonel partiu, não sem antes garantir: dali por diante o velho casarão estaria livre de seus fantasmas, pois a praga maldita fora desfeita. O tesouro, enfim, voltava às mãos de seus verdadeiros donos...

*Autoria de Marina Alves - Lagoa da Prata MG
Esse texto compõe o livro "Sombras e Assombrações", com 1ª Edição em 2007 e  2ª edição (revisada e ilustrada) em 2013 para participação no Microprojeto Bacia do Rio São Francisco, promovido pela Funarte e Ministério da Cultura. (ilustração nossa - Pintura do artista plástico Alfredo Vieira) *Os textos, alguns são inspirados na literatura oral regional,  outros em "causos" ouvidos de meus pais e avós,  outros são de  pura imaginação mesmo. 

6 comentários:

  1. Linda, linda ilustração! Parabéns a Alfredo Vieira por sua magnífica arte Obrigada, Arnaldo, obrigada aos leitores que curtem o gênero e a leitura.

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  2. Viagei na historia,já ouvi vários relatos sobre,mas gostei conseguiu me prender na leitura ,fantástico!

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  3. Apaixonante... remeteu-me de volta às rodas de causos contados pelos meus tios, na roça... que saudade!!!

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  4. maravilhoso, voltei aos tempos de infância qdo minha avó contava causos.

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